Artigo Científico
RESUMO
O presente artigo analisa aspectos da evolução política da humanidade sob o prisma do desenvolvimento conceitual dos principais fundamentos democráticos, a partir da antiguidade grega, aproximadamente 500 AC, até 1988, quando da promulgação da Constituição brasileira.
Seguindo uma trilha histórica de pensamentos convergentes que resultaram na consagração do que se tem hoje conceituado como alguns dos principais fundamentos democráticos, quer estabelecer a correlação entre estas concepções e os princípios e fundamentos democráticos inseridos na Constituição brasileira, por determinação dos 559 constituintes de 1988, notadamente no que se refere à estrutura operacional e as bases da nossa Democracia.
Nesta dissertação busca-se demonstrar como e porque a soberania popular, tida como fundamento estruturante das constituições democráticas, e com um só significado consagrado na doutrina jurídica, foi neutralizada pelo Poder Legislativo no Brasil, como resultado da promulgação de legislação regulatória contendo uma lacuna técnica impeditiva do livre exercício da soberania popular o que, na prática, em função da superposição de outro poder, anula a supremacia da sociedade no exercício da democracia brasileira.
E, concluindo, aponta que esta lacuna técnica constitucional é responsável por criar uma distopia democrática que se normalizou em nossa sociedade, de cuja não eliminação se constituiria em obstáculo intransponível na construção da Democracia brasileira, na forma da sua configuração expressa na Constituição de 1988.
SUMÁRIO
Página
- Resumo …………………………………………………………………………………………………. 02
- Introdução …………………………………………………………………………………………….. 04
- Povo………………………………………………………………………………………………………. 06
- Maioria………………………………………………………………………………………………….. 09
- Soberania Popular …………………………………………………………………………………. 11
- Democracia …………………………………………………………………………………………….. 15
- A Lacuna Técnica na Lei 9709/98………………………………………………………………. 19
- Conclusão ………………………………………………………………………………………………. 23
- Referências ……………………………………………………………………………………………. 25
INTRODUÇÃO
“A partir da história não somente o presente é facilmente explicado, mas também o futuro é deduzido e são formados de modo correto os preceitos sobre as coisas que se devem desejar e evitar” (Bodin 2, p. I)
A literatura jurídica é riquíssima em definições sobre princípios democráticos e sobre o poder do povo. De Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.) aos contemporâneos como Friedrich Müller (1938), passando pelo Rei João Sem-Terra (1166 –1216), Jean Bodin (1530 -1596), Thomas Hobbes (1588-1679), John Locke (1632-1704), Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), John Adams (1735 – 1826), Alexis de Tocqueville (1805-1859), Paulo Bonavides (1925 – 2020), entre uma infinidade de outros autores de livros, de ensaios acadêmicos e de artigos científicos, são incontáveis as ponderações analíticas, as definições, os estudos e as conclusões lógicas e científicas sobre princípios democráticos; sobre os significados léxico, político e filosófico de “Democracia” e sobre o povo, e o poder do povo.
Apesar de existirem divergências de opinião e até mesmo contradições entre autores, em relação a pontos conceituais específicos da filosofia política e, mesmo considerando que ao longo do tempo os conceitos sobre Democracia variaram, assim como suas aplicações práticas, em virtude de circunstâncias particulares de cada época e de cada comunidade, é possível constatar-se, também, que uma somatória de entendimentos aferentes de consagrados autores, sobre temas democráticos específicos, corroborados pelo acolhimento nas principais comunidades acadêmicas e jurídicas ao longo da história, acabaram por consolidar aquilo que hoje temos pacificado em relação a alguns dos princípios democráticos mais estruturantes. Quais sejam: a soberania popular e a garantia dos direitos humanos e fundamentais
E é sobre algumas dessas opiniões consonantes que colocamos nossas lentes neste estudo, já destacando que o primeiro, e mais notório ponto de entendimento comum entre todos os pensadores da Democracia na história, é o fato de que “Democracia” sempre foi, e ainda é considerada como um sistema operacional de tomada de decisão, obrigatoriamente relacionado à apuração da vontade de uma maioria.
Seguindo esta linha de raciocínio buscaremos correlacionar algumas destas concepções acadêmicas e jurídicas, já consagradas, com o desejo dos constituintes de 1987/88, ao incorporá-las na forma dos princípios, fundamentos e normas, expressos em nossa Constituição.
Mais especificamente, seguiremos um caminho percorrido por consagrados pensadores na história, expressos em enunciados convergentes sobre “povo”; sobre a legitimação do poder da “maioria”; sobre “soberania popular” e, finalmente, sobre a própria Democracia, conforme configuração dada pela Constituição de 1988, até identificarmos e descortinarmos a lacuna técnica da Lei 9709/98.
Na elaboração deste ensaio foi utilizada uma metodologia indutiva, partindo-se de uma abordagem cronológica de citações literárias de pensamentos e assertivas de consagrados autores; manifestações de Ministro da Suprema Corte; citações e declaração de constituintes de 1987/88, todas relativas aos conceitos dos seus autores sobre “povo”; “maioria”; “soberania popular” e Democracia, seguindo um caminho no campo da ciência jurídica, até que entendimentos convergentes se consolidaram como predominantes na doutrina. E, então, levanta-se a hipótese de que a maioria dos constituintes de 1987/88 compartilhavam estes mesmos entendimentos consagrados quando decidiram inseri-los na Constituição de 88, na forma de princípios e fundamentos da nossa Democracia para a final, sob a luz desta hipótese, demonstrar a existência de uma lacuna técnica em legislação infraconstitucional.
O POVO
Desde as primeiras considerações cientificamente elaboradas sobre democracia, até hoje, o vocábulo “povo” foi e é utilizado para descrever diferentes conjuntos de pessoas. E, certamente, ainda há muita confusão entre o significado das expressões povo; sociedade; nação e população.
Cabe, pois, analisarmos a evolução da significância do termo a partir de algumas concepções de autores clássicos sobra o tema Democracia.
Tomando como ponto de partida a antiguidade grega, Aristóteles e seus contemporâneos utilizavam o termo “povo” (em grego: dêmos) para referir-se apenas a uma pequena elite dominante, com plenos poderes perante o restante da população de uma cidade, ou Estado.
“O povo da democracia ateniense não eram todos os indivíduos que viviam de modo permanente sob o governo de Atenas, e sim uma pequena parte deles. Segundo cálculos abalizados, essa população era de 230 a 240 mil pessoas; destas, cerca de 150 mil eram escravos, sem direito algum. Das 90 mil pessoas livres, 60 mil eram mulheres e crianças, também sem direitos políticos, e os habitantes dos arredores da cidade não compareciam geralmente às assembleias políticas; e entre os próprios citadinos alguns deixavam-se ficar sob as árvores que Cimon mandara plantar na ágora, ou no mercado, ou diante dos tribunais. As decisões mais importantes deviam ser tomadas pelo ‘povo inteiro’, segundo as leis. Na verdade, nesses casos, os cidadãos presentes não eram mais de 6 mil.” (Azambuja, Darcy, op. cit., p.243,)
Este conceito aristotélico de “povo”, que hoje poderia ser considerado elitista, preconceituoso e misógino para grande parte da humanidade, prevaleceu inabalável por séculos, e foi somente com a chegada do iluminismo que o conceito de “povo” passou a ser tido pelos pensadores da Democracia como a população total de uma cidade, ou de um Estado. E, até hoje, este é o entendimento usual no cotidiano brasileiro.
Foi então, a partir do século 17, com os primeiros filósofos políticos “contratualistas”, que a humanidade espertou para a ideia de “povo” como fonte de poder, que adquire plena força na afirmação da existência de uma vontade geral e de direitos fundamentais, situados na base de toda a organização social e política.
Um dos primeiros contratualistas, Thomas Hobbes, já atribui um duplo sentido à designação da palavra povo. Num sentido, a designou em função do lugar que as pessoas habitam, em consonância com o significado de população. Em outro sentido designou povo como sendo “uma pessoa civil, ou seja, cada homem, ou cada conselho, na vontade de quem é incluída e envolvida a vontade de cada um em particular” (HOBBES, 2002, p. 150).
Para Thomas Hobbes, em seu tratado Do Cidadão, enraizado numa democracia originária, duas coisas constituem uma democracia, das quais uma “é a convocação perpétua de assembleias – forma o demos ou povo, enquanto a outra que é a maioria de votos – forma tò krátos, ou o poder” (HOBBES, 2002, p. 123).
Poucos anos depois, Rousseau em sua obra “O Contrato Social”, argumenta que os indivíduos se unem em sociedade através de um contrato voluntário, criando um corpo político conhecido como o povo. Rousseau, portanto, definia povo como sendo uma entidade coletiva, composta por todos os cidadãos de uma comunidade, independentemente de sua raça, posição social ou riqueza.
Porém, é preciso notar que esta entidade coletiva concebida por Rousseau, também para ele era composta apenas pelos indivíduos considerados “cidadãos” em uma comunidade política, e não como a mera soma dos habitantes de um local. Ele argumentava que a vontade do povo é suprema e que deve ser expressa através da “vontade geral”, que é a soma das vontades individuais de todos os cidadãos, e não de todas as pessoas que habitam uma mesma localidade.
Assim, com o fim da idade média dois conceitos essencialmente diferentes sobre o significado do vocábulo povo, tornaram-se predominantes na literatura jurídica: o de povo como conjunto dos indivíduos (população) de uma cidade, e o de povo como conjunto cidadãos de uma localidade, entendendo-se como cidadão apenas aqueles indivíduos dotados de direitos políticos e eleitorais.
Mesmo no século XX ainda é possível verificar grandes mentes ocupadas com assuntos democráticos, como Geneviève Bollème, conceituando “povo” da forma mais abrangente possível e, considerando que a expressão derivada do latim populus, descreve “povo” como sendo o conjunto dos “habitantes de um Estado constituído, de uma cidade” (BOLLÈME, 1988, p. 15), portanto como a população de uma cidade, ou de um Estado.
Entretanto, outros juristas consagrados do mesmo século XX, como Friedrich Müller e Espinosa, já tinham outro modo de pensar.
Müller, a seu tempo, definiu “povo” como sendo “o conjunto dos indivíduos titulares de direitos e deveres perante a ordem jurídica interna, fundada nos direitos e garantias constitucionais, como os direitos políticos, os relativos à seguridade social, enfim, aqueles que são intrínsecos ao exercício constante da cidadania perante o Estado, beneficiados pelas ações estatais, posto que sejam destinatários naturais destas” (MÜLLER, 1998, pp. 55-58).
E Espinosa, ao seu tempo, chama de cidadãos os “homens considerados gozando de todos os privilégios que a cidade concede em virtude do direito civil” (ESPINOSA, 1973, pp. 320-21).
Adiante, Bonavides, conceitua que o termo “povo” pode ser estabelecido sob três pontos de vista: o político, o sociológico e o jurídico. Sob o prisma político, Bonavides ressalta o conceito cunhado por Afonso Arinos, de povo como sendo aquela parte da população capaz de participar, através das eleições, do processo democrático, dentro de um sistema variável de limitações, que depende de cada país e de cada época. Já do ponto de vista sociológico, o conceito de povo se identifica com o de nação, designando “toda a comunidade do elemento humano, projetado historicamente no decurso de várias gerações e dotado de valores e aspirações comuns”. Por fim, num sentido jurídico, povo “exprime o conjunto de pessoas vinculadas de forma institucional e estável a um determinado ordenamento jurídico”, ou seja, é o conjunto de indivíduos que pertencem ao Estado por uma relação de cidadania. (BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa (por um Direito Constitucional de luta e resistência, por uma Nova Hermenêutica, por uma repolitização da legitimidade: Malheiros, 2001. p. 54)
Embora Bonavides aduza que existem várias acepções para o termo “povo”[i], tal autor ressalta a teoria de Friedrich Müller de povo como conceito de combate, a qual parte de toda uma evolução conceitual em torno de um povo ativo, instância global de atribuição de legitimidade e destinatário da prestação civilizatória do Estado.
Em sua concepção, Paulo Bonavides assevera que a expressão política de povo faz referência apenas ao “quadro humano sufragante, que se politizou, ou seja, o corpo eleitoral” (BONAVIDES, Ibid., id) e esta é a visão predominante no meio jurídico até hoje.
Portanto, é possível inferir que os constituintes de 1987/88, por razões técnicas e jurídicas, ao inserir o termo “povo” na Constituição brasileira, o consideraram especificamente como o conjunto de cidadãos e cidadãs no exercício de seus direitos políticos, ou seja, eleitores e eleitoras habilitadas a votar.
Conclui, então, o professor Comparato: “Observa-se, assim, que na teoria política e constitucional, povo não é um conceito descritivo, mas claramente operacional. Não se trata de designar, com esse termo, uma realidade definida e inconfundível da vida social, para efeito de classificação sociológica, por exemplo, mas sim de encontrar, no universo jurídico-político, um sujeito para a atribuição de certas prerrogativas e responsabilidades coletivas”. (Variações sobre o conceito de povo no regime democrático*FÁBIO KONDER COMPARATO)
A MAIORIA
Não é possível precisar o exato momento na história em que o ser humano começou a usar o poder da maioria como elemento decisório em questões internas das microssociedades originárias, mas, é certo que a história do princípio da maioria não é idêntica à história da democracia, apesar de alguns paralelos. “Mesmo na utilização da técnica do processo do princípio da maioria constatam-se variações que correspondem à exatidão ou inexatidão da contagem dos membros da maioria para tomar decisões eficazes, obtidas, todavia, com poder do conjunto dos membros do órgão decisório”. (cf. Heun 1983, p. 41).
Já o significado clássico das expressões “maioria” e “minoria” no vocabulário da Filosofia Política, posteriormente utilizado, também, na Ciência Política, é definido pelo elemento numérico, significando o grupo majoritário da situação que exerce o poder de governo e o grupo minoritário, alienado do poder, tornando-se a oposição. “O princípio da maioria é o que legitima o exercício do poder desde a definição aristotélica da democracia, como governo do povo ou de todos os cidadãos” (Bobbio, 1986, p.319).
Historicamente, o princípio da maioria tem sua primeira aplicação social no território greco-romano do século V AC. Lá, as decisões políticas importantes já deveriam ser tomadas por uma maioria de votos. “Na Grécia clássica, as assembleias populares (ágoras) pertenciam aos elementos permanentes da vida constitucional. Ainda antes o princípio da maioria foi introduzido nelas e via-se que seu motivo de validade estava na prova quantitativa representada pelo predomínio do maior número” (cf. Scheuner 1973, p. 18).
Na assembleia do povo de Atenas levantar a mão era a forma geral da votação. Todos os cidadãos do sexo masculino, com plenitude de direitos eleitorais, (que nelas vigiam), podiam participar delas, mas não de forma obrigatória (cf. Tarkiainen 1966, p. 238). A maioria simples dos presentes decidia, entretanto, as mulheres, escravos e metecos eram excluídos da participação política.
Muitos anos depois, com o mesmo espírito democrático, Locke justifica o princípio da maioria de acordo com a doutrina do pacto social, porque este o transformou em instrumento da união necessária à constituição da sociedade: “Quando qualquer número de pessoas têm um consenso para constituir uma comunidade ou governo, estão, por isso, realmente incorporados e constituem um corpo político, onde a maioria tem o direito de agir e decidir pelo restante” (Locke 1977, {1690}, Capo VIII, p. 95).
Na história foram muitas as justificativas técnicas e teóricas, convergentes, para atribuição do poder decisório à maioria, de sorte que algumas concepções sobre o tema foram se universalizando em torno da ideia de que “O princípio da maioria é aquele que possibilita a limitação da autodeterminação e, ainda, assegura o mais alto grau possível de liberdade, segundo o qual a liberdade política na ordem social deve ser entendida como a expressão de um acordo que deve ser firmado entre a vontade geral e a individual” (Bobbio, 1984, pp. 112-113).
Importante lembrar que ao mesmo tempo em que o princípio da apuração da vontade da maioria foi se estabelecendo como fórmula de tomada de decisão nas democracias, paralelamente outro princípio democrático ia sendo consolidado. O de que a vontade da maioria não pode ser utilizada para excluir, ou oprimir as minorias. Hoje, o necessário respeito às minorias é consensual nas democracias do Planeta, e talvez até merecesse, neste estudo, um Capítulo à parte.
Mas há, ainda, um aspecto importante que deve ser considerado sobre a vontade da maioria. Alguns autores, na apreciação da subjetividade do termo “maioria” consideram que antes de qualquer decisão da maioria, antes da própria consulta popular e antes, mesmo, da sua formulação, já haveria no psiquismo coletivo um clamor popular a ser posteriormente corroborado pela decisão que vier a ser tomada pela maioria, “O conjunto de pessoas deve mover-se na direção à qual o conduz uma força maior, que é a concordância da maioria” (Locke 1977 { 1690}, Cap. II, p. 96).
Essa assertiva de Locke consolida o pensamento clássico de Rousseau sobre a maioria, ou seja, o de que a vontade geral não representa o bem comum por ser majoritária, e sim porque expressa um “admirável acordo entre o interesse e a justiça” (Rousseau, 2006, II, cap. 4, p. 41).
Conclui-se, portanto, que o termo “maioria”, utilizado 48 vezes na Constituição de 1988, em consonância com a construção histórica de seu status de princípio democrático, está intrinsecamente relacionado à legitimação do poder decisório de um grupo, seja tratando de escrutínios entre parlamentares nas Casas Legislativas, como tratando de eleições de representantes ou de consultas populares.
A SOBERANIA POPULAR
Grandes pensadores da antiguidade clássica nos legaram alguns dos mais importantes embriões das ciências políticas, porém, não trataram da soberania popular. Como exemplos, não há referência à ideia da supremacia do poder do povo em obras políticas como A República, de Platão; a Política, de Aristóteles; ou Da República, de Cícero.
Muito embora a raiz etimológica do vocábulo “soberania” esteja nas palavras latinas super omnium, significando acima de tudo, é mais provável que ele tenha sido introduzido em nosso vernáculo pelo termo francês souveraineté. (Sidou, J. M. Othon. Dicionário jurídico: Academia Brasileira de Letras Jurídicas. 9ª edição. rio de janeiro: Forense universitária, 2004, p. 805).
O primeiro registro da palavra soberania que se tem registro na literatura política surge em 1576, na obra Os Seis Livros da República, do jurista francês Jehan Bodin. E, poucos anos depois, é utilizada com o mesmo sentido, também, nas teorias políticas de Hobbes e Sieyès, porém, é Jean Jack Rousseau, em fins do século XVIII, quem cria a concepção de soberania popular historicamente consagrada, na forma como a descreveu em sua obra “O Contrato Social”.
Assim, o protagonismo da soberania popular na história da Democracia tem sua origem factual na filosofia política do século XVIII, com os contratualistas, especialmente nesta obra de Rousseau (O Contrato Social), tendo surgido, evidentemente, como resposta, ou reação ao modelo monárquico absolutista e opressor que dominava a Europa antes da Revolução Francesa.
Ao longo da história, a teoria da soberania popular de Rousseau se legitimou a tal ponto que na atualidade é, praticamente, a única aceita. Não por outra razão, Rousseau é aclamado até hoje por inúmeros autores e autoras como Hannah Pitkin (1967) e Carole Pateman (1970). 2016, pp. 339-47) como o grande teórico da participação direta do povo nas decisões políticas.
Rousseau defende a ideia de que o povo reunido em assembleia é a autoridade política máxima (Rousseau, 2006, III, cap. 14, p. 111) e que apenas a vontade geral é capaz de realizar a finalidade do Estado, que é o bem comum (Rousseau, 2006, II, cap. 1, p. 33).
A partir de então, para os democratas, a legitimidade das decisões políticas fica tão atrelada ao sujeito detentor do poder (o povo) quanto ao seu conteúdo (a vontade geral).
Esclarecia Rousseau seu modo de pensar dizendo que “A soberania é indivisível pela mesma razão por que é inalienável, pois a vontade ou é geral, ou não o é; ou é a do corpo do povo, ou somente de uma parte. No primeiro caso, essa vontade declarada é um ato de soberania e faz lei; no segundo, não passa de uma vontade particular ou de um ato de magistratura, quando muito, de um decreto”. (Rousseau, Jean-Jacques. Do contrato social. tradução por Lourdes Santos Machado – Coleção os pensadores: Rousseau, vol. i). São Paulo: editora nova cultural, 1999, p. 87)
Entretanto, nos tempos modernos, a primeira utilização prática do conceito de povo como titular da soberania democrática ocorreu antes, ainda, da Revolução Francesa, lá com os norte-americanos no primeiro semestre de 1776, portanto anteriormente a declaração de independência dos E.U.A. Foi quando Thomas Jefferson, ao redigir o projeto de Constituição para a Virgínia, atribuiu ao povo um papel proeminente na constitucionalização do país ao propor que esta lei suprema fosse promulgada “pela autoridade do povo” (Be it therefore enacted by the authority of the people that…).
Posteriormente, então, com a Revolução Francesa a doutrina da soberania popular começa a ser posta em prática na França com a Declaração dos Direitos do Homem e do cidadão consagrando o fundamento democrático de que “O princípio de toda a soberania reside essencialmente na Nação. Nenhum corpo político e nenhuma autoridade pode exercer autoridade que dela não emane explicitamente.” (Declaração dos Direitos do Homem e do cidadão, art. 3º)
A partir de então a soberania popular mais do que um princípio político, vai se consagrando como fundamento das democracias e se estabelece o entendimento de que o poder político na democracia reside no povo e, que a autoridade do Estado é legitimada apenas e unicamente, pelo consentimento do povo.
De volta às Américas, e seguindo essa mesma diretriz democrática, Abraham Lincoln, no seu famoso discurso de Gettysburg, em 1863, marcando o fim da Guerra de Secessão americana, definiu aquele momento como o novo nascimento da Liberdade que iria trazer a igualdade de fato entre todos os cidadãos, criando uma nação unificada em que os poderes dos Estados não se sobrepusessem ao “Governo do Povo, Pelo Povo, para o Povo”.
E, com esta frase, Lincoln criou uma das formas mais populares de definição da democracia: a forma de governo onde o exercício do poder político “do povo”, é articulado “pelo povo” e “para povo”, em plena sintonia com o conceito rousseauniano de soberania popular, frase que, então, os norte-americanos lapidaram para a eternidade no Lincoln Speech Memorial em Washington, D.C.,
Seguindo os mesmos parâmetros democráticos apontados por Bodin e por Rousseau, no início do século XIX, Tocqueville, escrevendo sobre a relação das leis com a soberania popular, vem argumentar que “Quando se quiser falar das leis políticas dos Estados Unidos, é sempre pelo dogma da soberania do povo que convém começar”. E, ainda, à cerca da fonte originária de onde emana o poder, indica Tocqueville que. “O povo participa da composição das leis pela escolha dos legisladores, da sua aplicação pela eleição dos agentes do poder executivo; podemos dizer que governa por si mesmo, a tal ponto a importância deixada à administração é fraca e restrita, a tal ponto ela é marcada por sua origem popular e obedece ao poder de que emana. O povo reina sobre o mundo político americano como Deus sobre o universo. Ele é a causa e o fim de todas as coisas. Tudo provém dele e tudo nele se absorve” (Tocqueville, 2005: 68).
E, assim, no século XX se consolida na literatura jurídica o entendimento de que a soberania popular, mais do que um princípio filosófico político, é elemento estruturante e inalienável das Democracias, portanto, de indispensável atenção na construção das constituições democráticas.
Também para muitos dos respeitáveis pensadores brasileiros do Século XX, a doutrina da soberania popular seguiu a mesma linha rousseauniana, hoje consagrada como fundamento do Estado Democrático de Direito brasileiro
Nesse sentido, Florestan Fernandes articula que é “a noção de soberania popular que constitui o cerne da concepção liberal clássica de democracia, isto é, a ideia de que ao povo cabe a legitimação do poder político de uma nação, quer seja de forma direta ou representativa” (cf. BOBBIO, [1985] 2007, p. 31-36; HEYWOOD, [2007] 2010, p. 52-55).
Como se vê, o paradigma rousseauniano da soberania popular é extremamente relevante para pensar questões próprias do debate contemporâneo, e continua preponderante no horizonte da defesa normativa das democracias justamente porque associa a legitimidade da soberania do povo à participação direta na elaboração das leis.
Em meio à Constituinte de 1988 já se destacavam as opiniões consonantes com a definição de Rousseau: “Jamais poderemos dizer que o povo é a origem e a fonte de legitimação do poder, se estiver dissociado dos organismos que produzem a Lei Magna, as Leis Ordinárias e o controle fundamental do funcionamento do Estado em um país moderno”. (FLORESTAN Fernandes, 20 de Fevereiro de 1987 Diário da Assembleia Nacional Constituinte, pg 371)
Esse é o espírito da Constituição de 1988, a intenção dos constituintes explicitada no lendário discurso de outorga da Constituição proferido por Ulisses Guimarães, notadamente quando de forma categórica e insofismável ele declara: “É o clarim da soberania popular e direta, tocando no umbral da Constituição, para ordenar o avanço no campo das necessidades sociais. O povo passou a ter a iniciativa de leis. Mais do que isso, o povo é o super legislador, habilitado a rejeitar pelo referendo projetos aprovados pelo parlamento. A vida pública brasileira será também fiscalizada pelos Cidadãos. Do presidente da República ao Prefeito, do Senador ao Vereador A moral é o cerne da pátria” (Ulisses Guimarães, 1988 – op.cit.).
Em resumo, em nome dos 559 constituintes, Ulisses esclarece em alto e bom tom para que serve, ou para o que deveria servir, o Art. 14 que eles inseriram na Constituição. Segundo Ulisses, ele serve para o povo ter iniciativa das leis; serve como forma de o povo fazer Lei e, de rejeitar uma lei do Parlamento e serve, ainda, para os cidadãos e cidadãs poderem exercer efetiva fiscalização da vida pública brasileira.
A DEMOCRACIA
“Nós nunca tivemos Democracia até hoje, porque Democracia significa soberania popular, e soberania popular significa que o povo tem o poder supremo de designar os governantes, de fiscalizar a sua atuação, de responsabilizá-los, de demiti-los e de fixar as grandes diretrizes da ação estatal para o futuro.”
Fábio Konder Comparato (*)
Talvez aquilo que hoje temos por Democracia tenha surgido de uma condição humana, da natureza do espécime, de um “espírito” democrático congênito do ser humano, na medida em que os conceitos de igualdade e Justiça que norteiam as democracias sempre estiveram relacionados entre si, mesmo que instintivamente.
Provavelmente seja impossível precisar o momento exato em que os rudimentos da democracia começaram a ser analisados ou aplicados a um sistema de governo de uma comunidade. Entretanto alguns historiadores, como Moses Finley, apontam que a primeira indicação material em termos de democracia encontra-se num texto fragmentado da ilha de Quios, datado entre 575 e 550 a.C. (FINLEY, Moses I. – Democracia antiga e moderna, Editora Graal, 1988, pg 129)
Porém, o primeiro registro histórico da percepção de que a igualdade é um bem social relacionado às raízes da natureza humana vem de Aristóteles, há mais de 2.500 anos, inferindo que a “democracia teve origem devido àqueles que se sentiam iguais num determinado aspecto, se convencerem que eram absolutamente iguais em qualquer circunstância; desse modo, todos os que são livres de um modo semelhante, pretendem que todos sejam, pura e simplesmente iguais” (ARISTÓTELES, 1998, p. 349).
Desde então, democracia sempre foi relacionada à apuração da vontade de uma maioria. “Ao longo de séculos, e até hoje, o sentido do termo democracia tem sido perfeitamente equivalente ao princípio da maioria, por isso é lícito dizer-se que “democracia é decisão da maioria” ( Stephan Kraut – O Princípio da Maioria, Publicado originalmente em alemão na Online Publications – Democracy in Politics and Social, pg. 01)
Porém, após Aristóteles e seus contemporâneos terem desenvolvido os rudimentos democráticos, a gestação da Democracia permaneceu praticamente congelada nos próximos dois milênios, até o Século XVII, quando alguns filósofos políticos, posteriormente apelidados de “contratualistas”, propiciaram o grande salto de concepção que levaria a Democracia ao estado da arte, desenvolvendo e estabelecendo o juízo de que a soberania popular é o principal fundamento da Democracia.
Os contratualistas, já argumentavam que a sociedade humana surge a partir de um contrato social entre os indivíduos, em que eles (todos os indivíduos) renunciam a uma parte de sua liberdade natural em troca da proteção de um Estado e de garantias pessoais, fundamentais.
Mas, mesmo entre os principais contratualistas, como Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau, em suas teorias sobre a origem do poder político e da legitimidade do Estado, falando sobre o contrato social e sobre a soberania popular, há ideias ora convergentes, ora divergentes.
Hobbes, por exemplo, ainda acreditava que a soberania deveria ser exercida por um único governante, capaz de garantir a segurança e a ordem social. Para ele, a soberania não deveria ser compartilhada com o povo, que deveria se submeter ao poder do Estado em todas as questões.
Locke, por sua vez, defendia que a soberania popular deveria ser a base do poder político. Para ele, o Estado deveria ser um instrumento de proteção dos direitos naturais do indivíduo, e sua autoridade deveria ser limitada pelo consentimento dos governados. Locke acreditava que o poder deveria ser exercido pelo povo, através de seus representantes eleitos.
Já Rousseau defendia a soberania popular direta, em que cada cidadão participa diretamente da tomada de decisões políticas. Para ele, a vontade geral da sociedade deveria ser a base da autoridade do Estado, e todos os cidadãos deveriam ter a oportunidade de participar das decisões políticas.
Verifica-se com o passar do tempo, que os conceitos convergentes dos contratualistas iniciais e, posteriormente, daqueles contratualistas que os sucederam, foram se fundindo até se tornaram elementos estruturantes do “Estado Democrático de Direito” contemporâneo, como forma de governo que se baseia na garantia dos direitos individuais e coletivos; na divisão de poderes e na participação popular, tudo em conformidade com uma constituição escrita e em consonância com os fundamentos democráticos e os direitos humanos.
No Estado Democrático de Direito, portanto, a constituição “não é identificada com um grupo ou como um compromisso, mas como oriunda do povo em sua totalidade” (Müller, 1995, pp. 12-3, 15-6, 23-4, 34, 39-41)
Bonavides vai ainda adiante, ao definir a democracia como “o mais valioso dos direitos fundamentais”, na medida em que incorpora os princípios da igualdade e da liberdade, abraçados ao dogma da justiça. BONAVIDES, Paulo. A Constituição aberta. Belo Horizonte: Del Rey, 1993. p. 13.
Na obra de Bonavides, a democracia é conceituada como “aquela forma de exercício da função governativa em que a vontade soberana do povo decide, direta ou indiretamente, todas as questões de governo, de tal sorte que o povo seja sempre o titular e o objeto, a saber, o sujeito ativo e o sujeito passivo do poder legítimo”. (BONAVIDES, Paulo. A Constituição aberta. Belo Horizonte: Del Rey, 1993. p. 13)
Verifica-se, então, que a noção de democracia direta se desenvolve com base em dois componentes: o político, que é o “controle final e supremo do povo em todas as instâncias de exercício do poder”; o jurídico, que é o “princípio democrático erigido à categoria de direito fundamental – hoje na doutrina, amanhã na prática”. (QUIRINO, Célia Galvão. Tocqueville: sobre a liberdade e a igualdade. In: WEFORT, Francisco C. (Org.). Os clássicos da política. 6. ed. São Paulo: Ática, 1996. p. 157)
Não há dúvida de que, hoje, as modernas democracias são todas estruturadas em uma Constituição escrita e fundamentada na soberania popular. E isto se deve à somatória dos pensamentos convergentes de grandes autores das ciências políticas os quais, ao longo dos últimos três séculos, foram construindo o consenso de que a soberania popular é o mais estruturante fundamento democrático.
E todos estes autores tiveram sua inspiração no modelo de Rousseau. Não por outro motivo, hoje Rousseau é aclamado como o grande teórico da participação direta da sociedade nas decisões políticas, como o exaltam Hannah Pitkin (1967) e Carole Pateman (1970).
A posição de Rousseau, frente à soberania popular, consolidou-se de tal forma nas democracias do Planeta que hoje podemos sintetizar o significado de Estado Democrático de Direito como aquele em que o poder do Estado é limitado pelos direitos dos cidadãos. E, com isto podemos inferir que o Estado Democrático de Direito só existe quando há meios de a sociedade coibir abusos do aparato estatal para com os indivíduos. Desta forma, segundo Bonavides, “Não há democracia sem participação”. (BONAVIDES, Paulo. Os poderes desarmados: à margem da Ciência Política, do Direito Constitucional e da História: Figuras do passado e do presente. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 2326.)
Porém, para que o Poder do Estado possa ser limitado pelos direitos dos cidadãos e cidadãs, exige-se que a participação da sociedade nas democracias não seja limitada a um papel simplesmente consultivo porque, para que haja a possibilidade de um efetivo controle social da sociedade sobre as Instituições republicanas, é necessário que o “povo” (na sua acepção constitucional) tenha algum poder deliberativo: “a participação é o lado dinâmico da democracia, a vontade atuante que, difusa ou organizada, conduz no pluralismo o processo político à racionalização, produz o consenso e permite concretizar, com legitimidade, uma política de superação e pacificação de conflitos.” (Bonavides, Paulo -Política e Constituição: os caminhos da democracia. Rio de Janeiro: Forense, 1985. p. 509/ 510)
E, em 1988 o Brasil optou por organizar-se política e constitucionalmente sob a forma de Estado Democrático de Direito, assegurando ao seu povo a soberania política na República, soberania esta a ser exercitada diretamente pelo povo e/ou através representantes, conforme explicitado logo no Artigo inaugural da Constituição:
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania … §Único Todo poder emana do povo…”.
Portanto, quando se assevera que o Estado brasileiro deve submissão à soberania popular, não se está fazendo alusão a um simples princípio teórico, ou ideal utópico mas, sim, concluindo-se pelo óbvio que aflui não apenas da leitura do texto concreto da Constituição, como da leitura das próprias palavras de Ulisses Guimarães no retro mencionado discurso de outorga da Constituição: “Tem significado de diagnóstico a Constituição ter alargado o exercício da democracia, em participativa além de representativa. É o clarim da soberania popular e direta, tocando no umbral da Constituição” (Ulysses Guimarães – Discurso proferido na sessão de 5 de outubro de 1988, publicado no DANC de 5 de outubro de 1988, p. 14380-14382.)
Evidentemente, portanto, equivoca-se quem considera que o modelo democrático institucional brasileiro é um tipo clássico de democracia liberal representativa. Evidentemente, nossa Democracia segue o modelo participativo, devendo coexistir a atividade de representantes eleitos, com as consultas populares para as decisões mais importantes.
No mesmo sentido, afirma Colombano que “Ao contrário, a positivação em nível constitucional de formas de exercício direto da soberania popular leva à inegável conclusão de que a democracia brasileira evoluiu para o tipo misto ou semidireto, porque consagra, ao lado de institutos da democracia representativa, outros próprios da democracia direta, como o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular de projetos de lei, abrindo canais para intervenção popular direta nos processos de deliberação política do poder legislativo, com o fim de trazer o povo para o debate político e, assim, consolidar uma verdadeira e efetiva democracia no país”. (Colombano, Leandro Pereira – Soberania Popular e Supremacia Constitucional, p. 51)
A LACUNA LEGAL E A LEI 9709/98
A doutrina costuma classificar as lacunas da legislação em três tipos principais: lacuna normativa, axiológica e ontológica.
Na lacuna normativa há ausência de norma, ou de lei para o caso concreto. Na lacuna axiológica há lei para o caso concreto, porém sua aplicação se revela injusta ou insatisfatória. No caso em que não há, portanto, a completude da lei. Já na lacuna ontológica há lei para o caso concreto, porém a norma está desligada da realidade social, de modo que esta não mais possui aplicação prática.
Analisaremos aqui o caso da Lei 9709/98, que consideramos possuir uma lacuna axiológica constitucional. Uma lacuna que não está na Constituição, que não foi o constituinte originário que a gerou com sua omissão. Ao contrário, o constituinte originário delegou ao legislador constituído a regulação dos direitos estabelecidos no Artigo 14 da Constituição, justamente para que essa regulamentação pudesse garantir o exercício integral e eficaz destes mesmos direitos estabelecidos.
Para Luiz Regis Prado, a lacuna caracteriza-se quando a lei é omissa ou falha em relação a determinado caso. Em uma palavra, há uma “incompleição do sistema normativo”. (PRADO, Luiz Regis. Argumento Analógico em Matéria Penal, p. 162.)
A Suprema Corte brasileira, também, já se manifestou neste sentido, conforme descrição de lacuna constitucional dada pelo Ministro Celso de Mello em mandado de injunção, inferindo que a lacuna técnica “apenas se evidenciará naquelas estritas hipóteses em que o desempenho do cargo de legislar refletir, por efeito de exclusiva determinação constitucional, uma obrigação jurídica indeclinável imposta ao Poder Público.
(MELLO Celso de – Mandado de Injunção 756)
E na mesma decisão monocrática, o Ministro reitera este enfoque, afirmando que para que se comprove a lacuna técnica é imprescindível que se estabeleça “a necessária correlação entre a imposição constitucional de legislar, de um lado, e o consequente reconhecimento do direito público subjetivo à legislação…”. (MELLO Celso de – Mandado de Injunção 756)
Portanto, uma lacuna técnica se verifica quando há uma omissão do legislador constituído que, sendo obrigado a editar norma concretizada na Constituição, omite-se, ainda que parcialmente, da obrigação de fazê-lo.
No caso em tela, partimos do pressuposto que a Constituição de 88 veio estabelecer uma configuração geral para a Democracia brasileira, dada a partir de entendimentos consagrados pela maioria dos constituintes de 1987/88, sobre determinados princípios e fundamentos democráticos, acima analisados. Ou seja, pela análise da evolução histórica destes mesmos conceitos – já predominantes na doutrina ao tempo da Assembleia Nacional Constituinte de 1987/88 – é possível inferir que a intenção predominante entre os constituintes de então, foi a de conferir o mesmo significado claro e específico aos termos “povo” e “soberania” popular predominantes, também, na doutrina acadêmica os quais, ainda, poderiam ser transcritos de outras formas, quais sejam:
- O Artigo 1º da Constituição de 88 exalta como preceito fundamental que todo o poder político na República Democrática Brasileira pertence ao povo que, neste caso, não é toda a população, mas apenas eleitores e eleitoras habilitadas;
- O Inciso I do Artigo 1º da Constituição de 88, consagra a soberania (popular) como primeiro fundamento do Estado Democrático de Direito, atribuindo ao termo soberania o significado de “poder supremo”, ou “poder superior” da mesma forma como Rousseau a definiu há 250 anos e, ainda, da mesma forma como é tida nas democracias mais evoluídas do Planeta até hoje;
- O artigo 14 da Constituição 88 determina as duas únicas formas de direito no Brasil, para cidadãos e cidadãs exercerem a soberania popular de forma direta, quais sejam: através consultas aos eleitores e eleitoras, em plebiscitos ou referendos.
A conjugação destes três elementos induz ao raciocínio lógico que, possuindo um poder superior, e sendo soberano, o povo deveria usufruir de (ao menos uma) forma de expressar livremente tal poder, sem amarras. Sem que ninguém pudesse impedi-lo de fazê-lo. Porque, caso contrário, se houvesse alguém, ou grupo de indivíduos encastelados, dotado de um poder capaz até de calar o “povo” sempre que este quisesse se manifestar nas formas que a Constituição lhe concedeu para fazê-lo, seria ele, esta pessoa ou grupo, o portador do verdadeiro poder soberano e, consequentemente, não mais o povo, o que evidenciaria uma rasa subversão da ordem democrática.
E, como veremos, é exatamente isto o que vem ocorrendo no Brasil nos últimos 35 anos porque desde a promulgação da Constituição de 88, até hoje, o Parlamento tem se omitindo de editar uma norma que regulamente a forma como a soberania popular possa ser livremente exercida pela sociedade brasileira.
Indo mais a fundo nesta questão, podemos constatar que as obstruções legislativas ao livre exercício da soberania popular no Brasil podem ser divididas em duas fases. A primeira envolvendo as três primeiras legislaturas congressuais que sucederam a promulgação da Constituição de 1988, até 1998 quando o Congresso Nacional regulamentou o Artigo 14 da Constituição, com a Lei 9709. E, a segunda, desde quando esta Lei 9709 foi sancionada até hoje.
Nos 10 primeiros anos da Constituição democrática verifica-se que a lacuna técnica relativa ao exercício da soberania popular era normativa, portanto, total e absoluta, e ocorrera por mera omissão dos parlamentares de três legislaturas, na sua obrigação institucional de regulamentar o Artigo 14 da Constituição para tornar operacional a soberania popular, através consultas populares.
Depois, numa segunda fase esta lacuna técnica que até então era total, passa a ser parcial a partir da Lei 9709/98, quando o Congresso resolve regulamentar o Artigo 14 da Constituição excluindo, entretanto, qualquer possibilidade de que uma consulta popular no Brasil pudesse vir a ocorrer por livre iniciativa da sociedade.
E mais, ainda, a Lei 9709/98 determinou que a partir de então, todo e qualquer projeto para a realização de uma consulta popular aqui no Brasil haveria de passar por um longo e tortuoso processo político nas duas Casas do Congresso Nacional o que, na prática, acabou por inviabilizar as consultas populares no Brasil ungidas pela sociedade, de tal sorte que, até hoje, nenhuma, jamais, aconteceu.
De fato e de Direito, a Lei 9.709/98 deu ao Congresso Nacional um poder superior à soberania popular. Um poder capaz, até mesmo, de impedir que a soberania popular se manifeste na forma constitucional.
É o próprio Arthur Lira, o todo poderoso presidente da Câmara dos Deputados com mandato no cargo até 31/1/2024, que reconhece essa fraude ao espírito da Constituição e, com um sofisma ele mesmo diz que “hoje o país tem um Congresso com atribuições mais amplas” que no passado. (LIRA, Arthur – Presidente da Câmara dos Deputados em declaração durante evento da Associação Comercial de São Paulo em 06/03/2023). E, onde se lê “mais amplas”, leia-se: indo além do que a Constituição de 1988 lhe atribuiu, desconfigurando, portanto o desenho democrático original.
Com isto, a soberania popular da democracia brasileira restou subjugada pelo Poder Legislativo ou, mais precisamente, pelos seus dirigentes os quais, em virtude desta Lei, tornaram-se os verdadeiros soberanos na República brasileira, numa evidente subversão da ordem democrática.
E mais, ainda, em razão da forma como foi concebida e sancionada a Lei 9.709, excluindo toda e qualquer possibilidade de se perpetrar livremente uma iniciativa popular para consulta ao povo, verifica-se que tal Lei excluiu, também, toda e qualquer possibilidade de haver um efetivo controle social sobre as atividades do Legislativo e mais, de uma forma geral, da própria ação do Estado brasileiro.
Portanto, é lícito concluir que a carência de um mecanismo legal que permita à sociedade brasileira impor a realização de qualquer consulta popular, configura uma situação com todas as características protocolares e legais relativas à conceituação de lacuna técnica a qual, além de tornar sem efeito o principal fundamento constitucional da Democracia de 88 no Brasil, fere, também, princípio relacionado aos Direitos Humanos expresso no Tratado Internacional de Direitos Civis e Políticos ratificado pelo Brasil em 1992 que determina o direito de todo cidadão e cidadã, de “Participar na direção dos assuntos públicos, quer diretamente, quer por intermédio de representantes livremente eleitos” Art. 25_a (grifo nosso).
Em função desse “desvio de poder”, da sociedade para o Parlamento resultante da lei 9709/98, e sendo um Parlamento, como se sabe, sujeito a elevado grau de influência exercido pelo poder econômico, podemos dar alguma razão ao mestre Comparato que apontado um holofote para esta “questão” da democracia brasileira, vaticinou:
“Concluindo, na realidade política brasileira, todo poder pertence aos grupos oligárquicos que o exercem por meio dos representantes do povo. O povo continua como se fosse soberano”. (COMPARATO Fábio Konder – IPEA -DESAFIOS DO DESENVOLVIMENTO 2011 . Ano 8 . Edição 67 – 20/09/2011)
CONCLUSÃO
Verificamos, portanto, que a construção conceitual dos principais fundamentos democráticos hoje consagrados na doutrina, se deu ao longo de um período historiado de mais de dois mil e quinhentos, porém, que o “Estado Democrático de Direito”, na sua acepção contemporânea, teve sua configuração estabelecida apenas nos últimos duzentos e cinquenta anos, principalmente após o surgimento do contratualismo.
Acompanhamos a evolução de pensamentos que consagraram entendimentos sobre princípios democráticos, para inferir que o termo “povo” e as expressões “soberania popular e “Estado Democrático de Direito”, foram introduzidos na Constituição de 88 pelos constituintes de então, com pleno domínio dos seus respectivos significados técnico e jurídico, e com total consciência da sua implícita relevância política no contexto da democracia brasileira, que ali se desenhava.
Vimos que a existência da lacuna técnica na Lei 9709/98 se descortina como resultado da análise gramatical, sistemática, histórica, teleológica-axiológica e sociológica do termo “povo” e das expressões “soberania popular” e “Estado Democrático de Direito” na forma, e com o “espírito”, como foram introduzidos na Constituição de 88.
Some-se, portanto, aos raciocínios e conclusões lógicas aqui articulados, às declarações, concernentes de constituintes de 1987/88, aqui também trazidas à baila, e confronte-se todas essas informações com a definição jurídica de lacuna legal nas visões da doutrina e da Suprema Corte, aqui apresentadas e pronto. Como resultado desta confluência de fatores, veremos emergir de forma cristalina a lacuna técnica na Lei 9709/98.
Em ainda mais, outra evidencia importante da lacuna técnica apontada surge quando se considera a o Estado brasileiro não possui nenhum meio legal para cumprir com sua obrigação constitucional de promover a participação direta da Sociedade nas principais ações de Governo, obrigação à qual se soma outra obrigação de Direito Público Internacional relacionada aos Direitos Humanos e expressa no Tratado Internacional de Direitos Civis e Políticos, ratificado pelo Brasil em 1992, o qual determina o direito de todo cidadão e cidadã, de “Participar na direção dos assuntos públicos, quer diretamente, quer por intermédio de representantes livremente eleitos” (Art. 25_a – grifo e negrito nosso), em plena consonância com o que está estabelecido na Constituição de 1988.
E, finalmente, os próprios resultados nefastos para a Nação brasileira, causados por ações ou omissões de uma maioria parlamentar, falam por si mesmos a evidenciar a necessidade da existência e um mecanismo efetivo de controle social sobre as atividades e decisões do Parlamento, como exemplos o esdrúxulo orçamento secreto, o inescrupuloso teto de gastos, as inúmeras Emendas constitucionais, etc. que, talvez nem existissem, se precisassem ser referendados pela sociedade, evidenciando, mais uma vez, que em seu rumo de construção a democracia brasileira terá que enfrentar as forças que criaram e que mantém a lacuna apontada na Lei 9709/98.
Esta lacuna técnica que afastou o povo das principais decisões políticas no Brasil, e o impediu de exercer efetivo controlo social sobre o Poder Legislativo fez com que nossa Constituição deixasse de ser aquele contrato social rousseauniano endossado por todos os brasileiros e brasileiras em 1988, para se tornar apenas um texto base nas mãos de legisladores nem sempre escrupulosos, que em dez sucessivas legislaturas no Congresso Nacional a rescreveram ao seu bel prazer, mais de 120 (cento e vinte) vezes, sempre mantendo a sociedade brasileira bem afastada das famigeradas negociações políticas que dão vida às leis e às Emendas Constitucionais.
Pela análise da evolução teórica até a conceituação universal dos princípios e fundamentos do Estado Democrático de Direito, aqui abordados, verificamos, por declarações dos próprios constituintes de 1987/88, que eles, os constituintes, tiveram como consenso de sua maioria tratar por “povo” em nossa Constituição, a totalidade dos eleitores e eleitoras habilitadas; tratar como maioria do povo, a maioria dos eleitores; tratar como soberania popular, o poder supremo do povo, em consonância com o conceito rousseauniano de contrato social e, ainda, tratar como Estado Democrático de Direito aquele em que a soberania popular é exercida pelo povo, efetivamente, através seus representantes eleitos, ou diretamente.
Entretanto, considerando que no Brasil ainda existe um poder capaz de calar – como efetivamente calou – a soberania popular nos últimos 35 anos, e que esse mesmo poder é capaz de alterar a Constituição ao seu bel prazer remodelando-a como quiser – o que efetivamente aconteceu mais de 120 vezes – sem nunca consultar o povo que é a parte neste Contrato, evidentemente este poder é superior a aquele que aqui no Brasil emana do povo. Em razão do que, o povo não pode ser considerado soberano na República brasileira, tendo sido rebaixado à simples condição de súdito dos políticos que elege, em função da lacuna constitucional na Lei 9709/98.
Portanto, na forma como está estabelecida em nosso sistema jurídico, a Lei 9709/98 flagrantemente se opõe ao espírito democrático da Constituição de 1988 porque, como demonstramos, ela é a própria causa impeditiva do exercício de direito fundamental e humano, que é o direito ao livre exercício da democracia direta no Brasil, nas duas formas estabelecidas no Artigo 14 da Constituição Federal.
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[1] Advogado constitucionalista atuante em causas de interesse social – Fundador (2005) e atual Presidente da Organização da Sociedade Civil de Interesse Público Instituto Qualicidade – Autor do Mandado de Injunção nº 756 de 2007 no STF, em face do Congresso Nacional, pelo livre exercício da soberania popular; Patrono da ADPF 196 de 2009 no STF, em face da Justiça Eleitoral, pelo livre exercício da soberania popular; Coordenador e relator do Projeto de Lei de Iniciativa Popular do Estatuto Popular Contra a Corrupção; Coordenador e relator do Projeto de Lei de Iniciativa Popular “A Voz do Povo”, pelo livre exercício da soberania popular.